Uma transformação significativa e controversa no sistema de recuperação de crédito de veículos foi consolidada no Brasil com a publicação da Lei n.º 14.711/2023, conhecida como o Marco Legal das Garantias.
Remete à nova legislação que alterou profundamente as regras para a retomada de bens dados em garantia em contratos de financiamento, mais especificamente em veículos, ao instituir a possibilidade de busca e apreensão extrajudicial.
Este novo procedimento dispensa a necessidade de uma ação judicial prévia, foi recentemente validado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julho de 2025, e regulamentado em seus aspectos operacionais pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran).
O objetivo da lei é reduzir a burocracia, baratear o crédito, diminuir a inadimplência, aumentar a segurança jurídica. Contudo, a medida acende um intenso debate sobre a proteção ao consumidor e o equilíbrio na relação contratual.
A busca pela eficiência econômica e pela desjudicialização dos conflitos de crédito resultou em um novo paradigma que permite a retomada de bens pelo credor de forma mais célere.
A mudança exige uma análise criteriosa sobre a preservação de direitos fundamentais do devedor, como o devido processo legal e a ampla defesa, agora exercidos em um novo e mais rápido contexto.
A Ruptura com o Modelo Tradicional: Da Ação Judicial ao Procedimento em Cartório
Até a vigência da nova lei, a retomada de um veículo por falta de pagamento era condicionada ao ajuizamento de uma Ação de Busca e de Apreensão, com base no Decreto-Lei n.º 911/1969.
O credor precisava provocar o Poder Judiciário, que, por meio de uma decisão liminar, autorizava um oficial de justiça a apreender o bem. Esse processo, embora garantista, era frequentemente moroso e dispendioso, contribuindo para o aumento do custo do crédito (o chamado spread bancário).
Com a Lei n.º 14.711/2023, o cenário mudou radicalmente. O credor fiduciário (a instituição financeira) pode agora iniciar o procedimento diretamente no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, que passa a ter um papel central na execução da garantia.
O Novo Fluxo da Retomada Extrajudicial:
- Constituição em Mora: O primeiro passo, permanece inalterado, é a comprovação da inadimplência e a notificação formal do devedor para que ele pague a dívida (purgação da mora). Essa notificação é requisito essencial para a validade de todo o procedimento subsequente.
- Início do Procedimento Extrajudicial: Caso a dívida não seja quitada, o credor pode solicitar ao Cartório de Títulos e Documentos a instauração do procedimento de busca e apreensão extrajudicial. Essa possibilidade deve estar expressamente prevista no contrato de financiamento.
- Notificação para Entrega ou Defesa: O devedor é novamente notificado, desta vez pelo cartório, para, em um prazo de 20 dias, quitar a integralidade do débito, apresentar sua defesa ou entregar voluntariamente o veículo.
- Bloqueio via RENAVAM: Se não houver pagamento ou entrega voluntária no prazo, o oficial do cartório expede uma certidão e solicita ao órgão de trânsito (Detran) a inserção de uma restrição de circulação e transferência no Registro Nacional de Veículos Automotores (RENAVAM).
- Apreensão Efetiva: Com o bloqueio ativo, o veículo pode ser apreendido em qualquer fiscalização de trânsito (blitz) ou por meio de agentes especializados contratados pelo credor, sem a necessidade de uma ordem judicial específica para o ato. A lei prevê, inclusive, a possibilidade de apoio policial para a diligência.
Impactos e Direitos do Consumidor no Novo Cenário
A principal justificativa para a mudança legislativa é o impacto econômico.
A expectativa do mercado financeiro e do governo é que, com uma garantia mais robusta e execução mais rápida, as taxas de juros dos financiamentos de veículos diminuam, ampliando o acesso ao crédito.
Contudo, associações de magistrados, oficiais de justiça e de defesa do consumidor apontam riscos significativos:
- Vulnerabilidade do Devedor: A supressão da etapa judicial pode colocar o consumidor em uma posição de maior fragilidade. A discussão sobre cláusulas abusivas, taxas indevidas ou outras irregularidades contratuais, que antes ocorria no âmbito de um processo judicial, agora precisa ser arguida de forma mais ágil pelo devedor no procedimento cartorário ou por meio de uma ação judicial autônoma para tentar frear a retomada.
- Direito à Ampla Defesa: Embora a lei preveja a possibilidade de defesa no cartório, sua eficácia é questionada. O devedor tem um prazo curto para se manifestar e, diferentemente do Judiciário, o tabelião não tem poder para julgar o mérito de uma disputa contratual complexa. O STF, ao validar a norma, ressaltou a necessidade de se garantir a ampla defesa e o contraditório.
- O Direito de Purgação da Mora: Após a apreensão, o devedor ainda possui um prazo de cinco dias úteis para quitar a integralidade da dívida pendente (incluindo parcelas vencidas e vincendas), conforme o contrato, para reaver o bem.
- Proibição de Constrangimento: É fundamental destacar que o Código de Defesa do Consumidor (art. 42) continua em pleno vigor. O devedor inadimplente não pode ser exposto ao ridículo ou submetido a qualquer tipo de constrangimento, ou ameaça durante a cobrança da dívida e a eventual apreensão do bem.
Conclusão: Eficiência Econômica vs. Proteção Social
O Marco Legal das Garantias inaugura umaera na recuperação de créditos no Brasil e alinha uma tendência global de desjudicialização.
A busca e apreensão extrajudicial de veículos é a face mais visível e impactante dessa mudança, prometendo destravar o mercado com mais agilidade e menor custo.
O desafio que se impõe é encontrar o equilíbrio entre a eficiência almejada pelos credores e a proteção jurídica indispensável aos devedores.
A validação da norma pelo STF, com a ressalva de que os direitos fundamentais devem ser preservados, estabelece o tom para a aplicação da lei.
Caberá aos profissionais do Direito, aos órgãos de fiscalização (como o CNJ) e ao próprio Poder Judiciário, quando provocado, garantir que a celeridade do novo procedimento não se traduza em injustiça ou na supressão de direitos, assegurando que a modernização legislativa beneficie a economia sem fragilizar o cidadão.